Conto: Olhos em Mim


Na última postagem, eu falei sobre o "horror selvagem" e como (na minha opinião) o Lobisomem: o Apocalipse não se encaixava nessa definição.

Bem, escrevi um conto com minha visão de como seria um horror selvagem...

Espero que gostem:

OLHOS EM MIM


 O som do vagão vazio rolando pelos trilhos do metrô é, de certa forma, tranquilizador. Nada além daquele gingado ritmado, daquele ruído de fundo, tão alto que até esquecemos que está ali, daquela sensação de vazio e serenidade.

E era essa sensação que André buscava, todos os dias no último horário de embarque. A sensação de solidão.

Ali, naquele pequeno intervalo de tempo e espaço, ele podia realmente relaxar, se entregar ao vazio e apreciar o momento. Eram apenas 15 minutos de viagem, mas 15 minutos que valiam a pena esperar. A solitude era seu castelo e ele o rei do nada.

Entre um suspiro e outro, algo o trouxe de volta ao mundo dos vivos, algo tão terrível quanto perigoso. Ouviu, entre um balançar e outro dos vagões, vozes.

Pessoas.

Existia um motivo para ninguém escolher aquele vagão, o último vagão da linha 3. Ninguém se lembrava mais os detalhes corretos, mas todos conheciam a história macabra. Um casal, há mais de dois anos, havia sido encontrado morto ali (ou seriam cinco anos?). A história muda de pessoa para pessoa, mas o final é sempre o mesmo; um homem e uma mulher mortos, abraçados em um terno último adeus; com as cabeças separadas dos corpos.

Desde então, a história de fantasmas e monstros passou a assolar a linha 3. Ninguém (ou quase ninguém, como pensava André), se atrevia a entrar no vagão. Nem mesmo a troca do carro pela a administradora do metrô foi suficiente para aplacar a sede de mistério e superstição da população.

Meia dúzia de gatos pingados ainda utilizavam o vagão, mas nunca nas primeiras horas do dia e, certamente, não nas últimas.

André adorava as histórias, adorava seu vagão e adorava a solidão. E, do nada, seu castelo seguro estava sendo invadido.

As vozes começaram baixas (àquela hora da noite, poucas pessoas utilizavam o transporte) mas, logo, elas se tornaram um estrondo.

Duas garotas, não mais de vinte anos, entraram pelo vagão. Estavam vestidas de uma forma diferente. Calças jeans preta, com cortes e remendos em vários pontos; longas jaquetas de couro negro, com vários adornos metálicos e detalhes em prata; uma com um cabelo azul anil, arrepiado como o de um papagaio; a outra com um cabelo liso longo, vermelho como sangue. Apesar da apresentação hostil, conversavam como duas colegiais quando entraram no vagão, rindo e se espantando com a coragem que tinham.

E seus olhos se cruzaram com os de André.

Foi como se fogo caísse do céu sobre seus ombros. Por mais que tenha desviado o olhar, ele podia sentir aqueles olhos, ah aqueles olhos percorrendo cada pedaço do seu corpo esguio, julgando, medindo, especulando. Sentiu uma ardência subindo pelo estomago, um grito engasgado tentando se libertar, mas se conteve.

Mesmo sem perceber, se levantou de seu lugar (gostava do meio do vagão) e foi para o último assento, mais afastado possível das intrusas, mas sem muito sucesso.

Conseguia sentir o doce perfume das duas mulheres que se misturava com seu próprio suor frio. Sentia o bater acelerado daqueles jovens corações, tão inocentes, tão frágeis. Sentia suas mãos tremerem como a de um velho, e o sangue se esvair de sua face.

-- Nossa, que cara estranho - disse uma das garotas (talvez a de cabelo azul, talvez?)

-- Deixa o doido pra lá, ele parece que tá numa bad - outra voz agora, mais suave, mas velha.

Elas continuaram a conversar casualmente, distraidamente, mas André sentia os olhares ligeiros pousando nele, tão rápidos e intensos que preenchiam todo o vagão. Ele se sentia sufocado, doente, e as vozes estavam tão altas que pareciam lhe furar os tímpanos. E ELAS CONTINUAVAM A CONVERSAR!!!!

Se levantou e andou para outro assento, segurando os braços em um abraço apertado, unhas cravadas na pele. Um fio de sangue começava a escorrer.

Quantos minutos mais até sua parada?

-- Ei, locão, você tá bem?

-- Deixa o cara em paz Fab

-- Não, olha pra ele, o cara tá passando mal mesmo.

André começou a andar de um lado para o outro, contando cada segundo que passava. Um, dois vinte, vinte um.. mas só sentia o enjoo piorar. Uma das garotas se levantou, leve, perfumada, e começou a lenta caminhada até ali.

Cada passo era como um trovão.

-- Não eu.. eu estou bem.. - balbuciou entre os dentes, tentando manter o almoço no mesmo lugar.

-- Cara, você não tá legal.

Quantos passos agora? 10 ?

-- Por por favor, eu eu estou bEM.. sÓ ME DEixe sOZInhO pOR fAVoR..

-- Fab, deixa o cara ele tá doente - um tom de medo na voz, um doce tom de medo

-- Amor, calma, eu sei o que estou fazendo.

Apenas 3 passos.

Talvez por instinto, André se jogou na cadeira, encolhendo como um feto na cadeira. Tentava bloquear tudo, o olhar fixo das garotas, o som oco dos passos, o cheiro inebriante do perfume, o ritmo frenético do coração, o doce sabor do medo. Tentou e se fechou, implorando ajuda.

-- Vão embora vão embora

-- Moço, calma. Eu sou médica, eu posso ajudar.

O toque terno e macio daquela pessoa em seu ombro foi como um gatilho. Toda ansiedade, medo e controle se foram.

-- O.. que? - as últimas palavras da garota de cabelo azul suspiravam por um entendimento. Ela deu dois passos para trás (ou caiu?) olhando para as próprias entranhas espalhadas pelo chão. O cheio acre do intestino preencheu o vagão em menos de um segundo, e o cheiro de sangue fresco se misturou como uma sinfonia macabra.

-- AHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHH

A outra garota começou a gritar histericamente, inutilmente. Mas isso não atrapalhou a criatura que ali se alimentava ferozmente daquela que fora sua amante.

Quanto tempo fazia que não satisfazia sua fome? Quanto tempo vivendo como uma sombra entre a carne e os vagões? Quanto tempo reprimindo sua fúria e desejo?

A garota continua a gritar ao som de ossos sendo triturados e carne mastigada. A doce carne.

E logo, a outra garota perceberia que também haviam olhos sobre ela...


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