Esse conto é uma colaboração do nosso amigo e parceiro de longa data; Flávio Estéfano Balinski, escritor, roteirista de quadrinhos, editor e narrador de "causos" do misterioso e do sobrenatural no canal do youtube "Noites Sem Dormir" , além de um mestre de RPG apaixonado pelo universo sombrio das Crônicas das Trevas em suas horas vagas. No texto abaixo ele transcreve em forma de um pequeno romance, um trecho de sua imersiva trama dentro de seu cenário particular de Vampiro o Réquiem na cidade de São Paulo. Senhoras e senhores, com vocês; 


LUGARES ESCUROS


Dois irmãos conversavam sentados numa pequena mesa de quatro cadeiras, dentro da cozinha de um modesto apartamento de três cômodos num prédio antigo localizado próximo á estação do metrô Barra Funda, conhecido bairro da cidade de São Paulo. Luis, o irmão mais velho, abriu a garrafa térmica e colocou um pouco mais de café quente na caneca de Marcos, o morador do lugar. Enquanto este bebia, continuou com as perguntas.

- O problema está na fábrica do outro lado da rua? É isso, então?

 Depois de um longo gole, Marcos confirmou com a cabeça. Antes do irmão voltar a falar, continuou.

- Não tô delirando, parsa. Nem com crises e nem nada. - Respondeu, irritado, coçando, com as costas de uma das mãos, a cabeça calva apoiada no pescoço e tronco magros.

- Não falei nada disso, Marcos. Calma.

- Meio que tá na sua cara. Não tá dando muito pra disfarçar.

 Foi a vez de Luis se servir do líquido negro e fumacento que, apesar da tensão do momento, não deixava de estar saboroso. Enquanto engolia, pensava. " Abstinência. Depois de tanto tempo afastado do tratamento ele vai ter uma recaída logo, logo…"

 Conhecendo o silêncio do irmão, Marcos, ainda com a caneca na mão, levantou-se e foi até a janela aberta sobre a pia. De lá podia ver o galpão abandonado que tanto o perturbava. Com seus três andares escuros e silenciosos naquelas horas da madrugada. Ao redor dele e nas imediações não se observava viva alma. Apenas sombras, silêncio e uma sensação de angústia que parecia emanar daquela construção.

- Cê sabe a história desse negócio, não sabe?

- Alguma coisa. - Disse Luis, tentando simular um tom de brincadeira pra descontrair. - Ele é famoso. Quase um Joelma ou Andralls.

 Marcos permaneceu sério.

- Gente morreu aí. Não só no incêndio. Depois, também, quando ninguém mais queria saber disso. E agora tem o sumiço da moça.

- Isso eu não sabia.

- Porque não acredita em mim. E não prestou muita atenção no que te disse até agora.

 O irmão mais velho nada respondeu e permaneceu calado. Era melhor não contrariar. Marcos se afastou da janela e voltou para a mesa, sentando-se novamente. Continuou.

- Escuta. Uma moça de uns dezesseis, dezoito anos veio se chapar, trepar com o namorado ou a porra que for, numa noite aí dentro e não foi mais vista depois disso.

- E o namorado? - Questionou Luis.

- Já foram atrás dele até onde sei. Ficou meio noiado desde então. Não diz coisa com coisa e querem internar o lazarento. Mas a polícia tá quase convencida de que ele não fez nada com ela.

 O irmão de Marcos prosseguiu com o assunto, buscando ver até onde essa conversa ia.

- Aí começaram seus problemas? Por saber desse desaparecimento?

- Isso mesmo. Mas não tem só isso. Aconteceu uma pá de coisa comigo, Luizão. Vai me ouvir sem achar que voltei a me drogar de novo? Vai acreditar em mim?

"Era isso mesmo que queria escutar de você, queridão." Pensou o ouvinte. "Vamos ver como está esse delírio." 

 Ao irmão Luis não respondeu nada verbalmente. Apenas olhou para ele e acenou com a cabeça em sinal afirmativo.

- Uma semana depois que a polícia virou a fábrica de ponta cabeça e não encontrou ninguém, pararam de vir pra cá.

- Certo. - Concordou o interlocutor. Marcos prosseguiu. Estava convencido de que, pelo menos, seu irmão estava, agora, prestando atenção.

- Comecei ver um velho, que nunca vi por aqui antes, careca, bem vestido, todo playboy, rondando o quarteirão e as ruas ao lado da fábrica. Chegava uma hora que ele sumia e eu não o via mais.

- Isso aconteceu muitas vezes? Ele chegou a te ver também?

- Sim. Uma pá de vezes. O via quase que todo dia. Mas não acho que ele me percebeu, Luis. Não até então.

- Como assim?

 Marcos relaxou ou pouco e se serviu de mais café. Deu sequência ao relato.

- Ele tava entrando e saindo da fábrica. Não sei como porque tava tudo lacrado pela polícia. Mas eu sei que ele entrava e saia de alguma forma.

- Chegou a ver ele lá dentro?

- Não. Ele não.

 O semblante de Marcos assumiu um tom visivelmente sombrio ao terminar a frase e o homem parou, subitamente de falar. Seu irmão percebeu. Conhecia muito bem com quem estava falando.

- O que você viu lá dentro, rapaz? - Perguntou, sem as palavras medidas de anteriormente. Sabia que não ia gostar do que ouviria. Quase que por reflexo foi direto na indagação.

- Vi outra coisa.

- A moça desaparecida?

- Não ela, Luis. Antes fosse…

 O irmão mais velho permaneceu com sua postura firme. Não era mais hora de amenidades.

- Então fala. Estou aqui te ouvindo e acreditando em tudo o que me falou. - O blefe pareceu ter funcionado e Marcos não voltou á defensiva dessa vez. - Me conta o que houve.

 O irmão mais novo respirou fundo.

- Numa madrugada estava aqui mesmo, na janela da cozinha. O velho já tinha aparecido um pouco mais cedo e sumiu. Tinha certeza que ainda estava lá dentro e fiquei um tempo procurando ele pelas janelas e pelo pátio da fábrica. Até que vi alguma coisa. Mas não foi ele.

- E foi quem?

- Não foi ninguém. Foi uma coisa. Um bicho. Grande. Andando no pátio, no meio do matagal entre o muro da esquina e uma das paredes da fábrica. Quem estivesse na rua não conseguiria ver aquilo. Mas, daqui de cima, consegui enxergar bem.

- Qual o problema disso? Era um cachorro perdido. Ou coisa assim. Sei lá. Porque a preocupação com isso?

 Marcos encarou o irmão com a mesma expressão soturna de antes.

- Não era um cachorro. Era uma coisa que nunca vi antes. Parecia uma mistura de cachorro com macaco, caralho… - Respirou profundamente e continuou. - Era escuro, enorme e não tinha pelos. Andava num gingado esquisito e tinha as patas da frente maiores e mais truncadas que as de trás. Era horrível. Pisquei e não estava mais lá.

 Luis tirou os óculos, enxugou os olhos e, passando a mão esquerda nos cabelos crespos e já calvos, seguiu com a conversa.

- Você viu isso de novo, depois desse dia?

- Não. Nunca mais.

"Porque largou a bosta do tratamento, Marcos? Tava tudo indo tão bem, inferno…"

- Mas o velho eu encontrei de novo. Uns dias depois do que vi no pátio.

 O irmão levantou a cabeça, subitamente.

- Como assim "Encontrou"?

- Acordei de madrugada e ele estava dentro do meu quarto, do lado da cama. Assim que o vi ele colocou a mão direita na minha boca e não me deixou falar nada.

- E você ficou quieto, não tentou reagir nem nada?

- Eu tava apavorado, amigão. E o velho não era normal. Era ruim. Alguma coisa ruim saia dele, não sei direito. Só fiquei ouvindo ele falar.

 Luis não se conteve mais. Abaixou a cabeça e soltou um longo suspiro de indignação.

- Sabia que ia duvidar.

- Termina Marcos. Agora vai até o fim. - Ordenou.

- Ele disse, até que calmo, que eu não tinha visto nada. Nem ele e nem nada na fábrica. E, antes de tirar a mão da minha boca, eu apaguei na cama e só fui acordar com o dia claro.

- Pode ter sido um pesadelo.

- Não foi. Tranquei a porta antes de deitar. A primeira coisa que fiz quando levantei foi ir ver ela. Estava destrancada e só encostada. O filho da puta arrombou meu apartamento sem fazer barulho ou estragar a fechadura.

 Luis se levantou e olhou para o irmão.

- Você não fica mais aqui, Marcos. Vai. Arruma suas coisas, pega o que precisa e vamos para minha casa. Sozinho não dá mais.

- Não posso atrapalhar sua vida. Vou incomodar você, a Léia, as crianças…

- Não vai incomodar nada. Faz o que tô dizendo que vou descer na garagem ajeitar o carro pra levarmos suas coisas. Anda.

***

 Enquanto Marcos ainda fazia as malas, dentro do apartamento, Luis, na garagem, ao lado de seu carro, conversava com o pai.

- Não dá mais, paizão. Ele perdeu de vez a noção da vida real. Voltou a se chapar com certeza! A hora que te contar o que me falou você vai ficar de queixo caído.

 O irmão mais velho ouviu por uns instantes as considerações do patriarca da família.

- Sim. Eu sei. Nem na minha casa nem na sua ele pode ficar. Não vai ter jeito. É clínica de novo. E, desta vez, sem previsão de alta tão cedo.

 Mais alguns segundos de diálogo seguiram até que Luis desligou. Minutos depois Marcos apareceu no elevador. Trazia nas costas uma mochila cheia e algumas sacolas na mão. Colocou tudo no porta-malas, sentou ao lado do irmão e foram embora.

 Na rua, ao passarem do lado da fábrica que tanto atormentava Marcos, este desviou os olhos para não vê-la.