GARM
[Costa de Albion, atual Inglaterra - Um dia após a batalha]
Os primeiros raios de Hélios começavam a raiar na pequena colina, refletindo nas minúsculas gotas de orvalho que salpicavam o vasto gramado verde do local. O vento frio do oceano continuava a soprar, leve e incessantemente, causando um curioso efeito no solo; era como se a superfície fosse coberta com um manto de água verde em constante movimento, dançando livremente sobre a face de Gaia.
A paisagem seria mais bucólica se não fosse pelos uivos e canções que preenchiam toda extensão da praia e dos montes. Os sons de jubilo e alegria se mesclavam ao ambiente natural como carne e sangue, como se os mesmos fizessem parte da mesma natureza, do mesmo ser. Era como se cada tambor fosse embalado pelas ondas do oceano, como se cada uivar fosse feito do próprio vento e cada dança parte da coreografia astral. Como se cada risada fosse feita da mais pura felicidade e nenhum mal, por mais terrível que fosse, pudesse corromper aquela bolha de euforia.
Entretanto, todo esse clima de deleite e felicidade não era uma regalia para todos os presentes. Não, esse sentimento era a conquista e premio dos vencedores e campeões, o bem quisto prêmio ao final da jornada.
Aos derrotados, apenas amargura.
Garm estava de joelhos sobre a grama, olhos semiabertos e respiração ritmada, contemplando o amanhecer com toda a serenidade que lhe era permitida naquele momento. Estava exausto, com todos os músculos do corpo reclamando veementemente da tortura ao qual foram submetidos nas últimas horas. As palmas das mãos estavam rasgadas e cheias de feridas, e o sangue escorria farto pela terra.
As horas finais da noite foram tomadas pelo simples preparo daquele ritual, decorando seu corpo com as pinturas corretas, entoando os cânticos necessários, preparando o terreno e os materiais, tudo deveria estar no lugar certo, do tamanho certo e para a hora certa. Não podia existir o menor espaço para falha, uma vez que tanto sua própria vida como a honra de seu amigo estavam em risco. Por fim, se encarregou de informar os espíritos sobre últimos acontecimentos, os próximos passos e o que estava por acontecer. Um trabalho por si só exaustivo, ainda mais agravado pelo motivo que o estava fazendo.
A parte fácil estava pronta.
Mesmo praticamente exausto e esgotado, sentou-se de maneira reta e serena, mantendo a compostura que os sábios de sua tribo haviam ensinado. Ou pelo menos tentou, pois seu coração estava travando em seu peito uma batalha perdida.
Ainda assim, em alguma parte de sua alma, uma voz infantil ainda o tentava, querendo saber se tudo o que ocorrera era realmente real, que os eventos da última noite realmente haviam acontecido. Aquela voz queria ter certeza que não era mais um pesadelo profético, igual aos tantos que tivera em toda sua vida.
Mas não era um pesadelo.
Seus irmãos de matilha estavam a poucos passos da colina, acompanhando compenetrados o trabalho no ritual. Garm conseguia, ainda que de longe, sentir os sentimentos de cada um deles.
Tempestade-Que-Esmaga-a-Wyrm estava na forma guerreira e pronto para a batalha. Segurava seu machado de prata tão fortemente que pequenos veios de sangue escorriam pelo cabo de madeira. Conseguia, ainda que longe, escutar o tambor incessante de seu coração, o impulsionando para a batalha. A fúria era tão intensa que poderia explodir a qualquer momento, numa tempestade de morte e destruição. Mas continuou parado, quieto com seus pensamentos e fúria sem igual.
Honrado-Pelos-Deuses estava deitado na forma lupina, encolhido em um pedaço de grama que ainda estava ali. Passara a noite toda irrequieto, chutando o chão, gritando consigo mesmo ou apenas andando sem rumo. O ragabash sempre teve as palavras na ponta da língua, afiadas como klaives, prontas para cortar tão fundo quanto suas garras. Mas continuou quieto, sozinho com seus pensamentos, tentando achar as palavras certas que nunca viriam.
Havia outra figura ali, acompanhando atentamente o ritual. Seu ombro estava esfacelado, com carne e ossos praticamente pulverizados, parte das costelas e coluna a mostra, sem carne. A dor que deveria estar sentindo era algo que Garm não conseguiria nem imaginar, mas ainda assim, a figura estava ali, mantendo uma distância respeitosamente grande, mas com olhar fixo e penetrante.
“Estamos todos aqui” concluiu o theurge com certo pesar. Sempre soubera que este dia chegaria, e havia se preparado da melhor forma que pudera. Era chegado o momento de dizer adeus à um grande amigo.
- Grande Fenris, escute meu chamado. Um grande guerreiro irá ao seu encontro hoje.
Se levantou, finalmente, sentindo as pernas dormentes pelo tempo que ficou ajoelhado e caminhou vagarosamente até a grande fogueira que erguera na noite anterior. Apesar de ter crepitado a noite inteira, ela ainda mostrava um ardor digno dos filhos de Fenris. Separou algumas ervas aromáticas e as atirou solenemente nas chamas, que queimaram num tom mais vermelho que sangue.
- Grande Fenris, escute meu chamado. Um grande guerreiro lutou sua última batalha essa noite.
O jovem garou deu três voltas completas na fogueira, e a cada volta as chamas pareciam que se avivavam mais, cresciam mais, tão fortes que pareciam consumir até mesmo os sons festivos que impregnavam o local. Logo, as chamas pareciam estar consumindo toda a colina, tingindo a paisagem de um púrpura ameaçador, mas, ainda assim, seguro.
- Grande Fenris, escute meu chamado. Um grande guerreiro tombou em seu nome essa noite.
As chamas começaram a dançar e subir aos céus, labaredas circulares e vivas, como se a própria terra estivesse respirando. Garm se ajoelhou novamente, contemplando o final do ritual. Sentia um vazio começando a se formar na base de seu estômago, pequeno, mas constante. Só se sentira daquela forma uma vez na sua breve vida, e não esperava senti-lo tão cedo. E não daquela forma.
Pegou um pouco da terra e a misturou em uma cumbuca de madeira negra, junto com algumas sementes, penas, o coração de uma gaivota e seu próprio sangue. Esmagou e mexeu tudo com suas garras, cantando baixinho - que sua caminhada no ventre da morte seja vitoriosa, que sua caminhada no ventre na morte seja gloriosa.
A sensação de vazio foi ficando cada vez mais forte.
Se levantou novamente, e caminhou até o imenso corpo que jazia estirado no chão. Devia ter mais de dois metros de altura, com uma musculatura quase sobrenatural. Possuía mais marcas e cicatrizes que qualquer outro garou que Garm tenha encontrado, testemunhos de uma vida de lutas e glória. E agora aqueles testemunhos jaziam sem vida à sua frente, com o peito aberto por uma ferida gigantesca, e um sorriso singelo e incompreensível na face.
As chamas atingiram o ápice do ritual, e encobriam toda a extensão da colina, como se cavalos de fogo corressem em volta do local. O calor era insuportável, e provavelmente letal. Mas não para os Fenrires.
Garm se ajoelhou em frente do herói tombado de maneira quase religiosa. Com toda a calma e delicadeza que conseguiu juntar (suas mãos começaram a tremer), começou a aplicar a tintura ritual sobre o corpo, mais precisamente sobre a testa, face e no ferimento exposto. Continuava a cantar aqueles pequenos versos, mas sua voz ameaçava o trair.
Ao terminar, se levantou para contemplar seu trabalho. Lars, o grande guerreiro Fenrir, o grande conquistador, estava pronto para sua última jornada.
O turbilhão de fogo pareceu compreender que os preparativos foram concluídos, e retornou a forma de grande fogueira, ainda ardendo em vermelho vivo. Podia se ouvir sons nítidos agora, como se, através do fogo, incontáveis batalhas estivessem sendo travadas. Espadas contra escudos, lanças contra armaduras, garras e presas, a canção da guerra era vívida, e vibrava com as ondas de calor.
- Grande Fenris, escute meu chamado. Seu filho está pronto para a última batalha.
O theurge se virou para as chamas púrpuras e assumiu a forma guerreira, o poderoso crinos. O vazio em seu estomago cresceu proporcionalmente, e quase o engoliu completamente. Fizera todo o ritual, preparara o corpo de Lars, tinha dito as palavras. Mas agora, que precisava finalizar o que havia começado, seu sangue começava a ferver e querer explodir.
O chamado da última batalha, ritual Fenrir para os mortos, era extremamente perigoso e traiçoeiro, tanto para os que o entoavam quanto para os que assistiam. Por isso fizera sua matilha ficar a uma distância segura. Segura para eles, pelo menos.
Por um fugaz momento, pensou em se entregar à canção de batalha, se armar e ir em busca da doce vingança. Por um fugaz momento, pensou em se juntar a Lars, em sua última caminhada em direção ao vale da morte. Por um fugaz momento, pensou em desistir.
Mas havia prometido a Lars. Seu irmão de sangue, seu alfa, seu amigo, havia prometido a ele, e jamais poderia abandonar aquela promessa. Mesmo que fosse odiado por seus irmãos, mesmo que os céus caíssem sobre sua cabeça, cumpriria a última promessa que fizera. E terminaria o ritual.
- GRANDE FENRIS, ESCUTE MEU CHAMADO!
Do centro das chamas, com um estrondo que faria um trovão parecer um simples baque, o corpo fantasmagórico e flamejante de um imenso lobo saltou. As próprias chamas o envolviam, e dançavam como lanças nos pelos da criatura, e suas presas seriam capazes de destruir a própria terra. Tão imensa que talvez até maior que a pequena colina onde estavam. Os olhos, como rubis cintilantes, fitavam o theurge com fúria e respeito.
- AQUI ESTOU, GARM COSTELA-DE-DRAGÃO.
- Grande Fenris, escuta meu chamado. Lars Estrela do Norte enfrentou seu último desafio, e agora espera sua benção para a próxima jornada.
O grande espírito desviou o olhar e fitou o corpo aos seus pés. Caminhou em volta do grande guerreiro, passos lentos, fortes e vibrantes. A fúria em seu olhar era implacável, imperdoável, irresistível, mas ainda assim, de forma quase paradoxal, calma. Estar diante do grande Fenris era uma honra sem igual, e um perigo maior que muitas das crias da destruidora.
Ao final daquele breve momento, que mais pareceu uma eternidade, Fenris finalmente parou de frente para o theurge, o encarando com uma solenidade quase incomum. No momento em que os olhos de Garm cruzaram com o do grande espírito, o theurge sabia que seria julgado juntamente com seu irmão caído. Caso não tivesse feito o ritual à altura, se tivesse cometido algum erro ou qualquer pequeno deslize, seria morto ali mesmo, estraçalhado pelas presas do Lobo-que-Devora-o-Sol. Seu coração chegou a parar naquele breve segundo.
- LARS, VOCÊ FOI UM GRANDE FILHO. SEU SANGUE ME HONRA, SUA LUTA ME COMPELE, E SUA MORTE ME ENFURECE. MAS NÃO SE PREOCUPE, HÁ MAIS BATALHAS E MAIS SANGUE A SER DERRAMADO. VENHA COMIGO, MEU FILHO, OS GRANDES SALÕES O AGUARDAM...
Sem nenhuma cerimônia, o grande Fenris se abaixou a abocanhou todo corpo de Lars, de uma só vez. As chamas e presas o consumiram quase que instantaneamente, numa visão tão bela quanto aterrorizante. E, tão rápido quanto surgiu, o imenso espírito saltou de volta para a fogueira, a consumindo completamente no processo.
Garm se permitiu entregar ao cansaço, e se ajoelhou na grama, agora negra. Estava exaurido, queimado e vazio. E esse era apenas o começo do dia.
CONTINUA...
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