GREINNE
[Em algum lugar na umbra rasa - 10 dias antes da batalha na Costa de Albion]
- RECUEM!!! RECUEM!!!
Os gritos de comando eram facilmente sobrepostos pelos intensos sons da batalha que se desenrolava na escura caverna. A cacofonia de estrondos, gritos e lamúrias transformava o lúgubre ambiente em um caos pavoroso e terrível. E ainda assim Grein sabia exatamente o que fazer.
- UNNA, BRAN, CERQUEM O MALDITO!!! GUILL, NIALL, ME DEEM COBERTURA AGORA!!
Estava na sua forma guerreira, em uma grande rocha que lhe dava uma pseudo visão do campo de batalha. A caverna era ampla, com as paredes tão distantes que era impossível saber onde terminavam. Tão pouco o teto, de tão alto, parecia até precipitar algumas nuvens. E a escuridão total e completa, era como entrar no antro mais profundo do inferno.
"Talvez seja isso mesmo", pensou alto, enquanto coordenava seus pensamentos com os de sua matilha. Estavam em menor número, em território hostil e em desvantagem por causa da escuridão. Seria praticamente impossível sair dali com vida.
Grein trocou olhares com seus irmãos, sabendo que aquele exato pensamento passara na cabeça de todos. E sorriu.
- Parece que o jantar hoje será um pouco mais tarde, pessoal.
Seus irmãos sorriram de volta, um gesto sincero e compreensivo. Sabiam que aquelas palavras não era um blefe, brincadeira ou um adeus. Era a simples realidade que se cumpriria mais tarde.
- Vamos dar a eles o gostinho de uma luta com Fiannas.
Juntando todas as forças nas patas traseiras, saltou com toda a força para o meio dos malditos, uivando a melhor canção que conseguia se lembrar.
Três horas mais tarde, Luna começava a mostrar sua face mais bela, completamente cheia e brilhante. A garou e sua matilha estava se banhando nas margens do rio Bann, um dos mais próximos à seita do Cervo Noturno. A batalha havia sido difícil, mas, graças a Gaia, estavam todos vivos.
- Desta vez tivemos sorte - disse Bran Martelo-e-Fogo - e não foi pouca não hein!
- Não seja ridículo Bran, Greinne tinha tudo sobre controle, como sempre - constatou Unna Mares-do-Norte.
- Ah Unna, pelo Cervo, nós quase morremos naquela caverna. Veja o Niall, nem está conseguindo falar com aquele corte no pescoço. E o Guill ainda não acordou.
- Tudo planejado, tenho certeza!
Unna se virou para Grein, com um olhar que mesclava convicção e esperança, quase como o de um filhote que acabara de ouvir uma incrível história. Não pode conter o sorriso vendo aquela cena tão boba, ainda mais depois da batalha que acabara de acontecer.
A galliard estava deitada às margens, limpa e purificada, mas ainda aproveitava o frescor das águas do Bann. Existiam muitas lendas sobre os poderes curativos e rejuvenescedores daquele rio, e todas elas eram verdade. Amarrou os longos cabelos ruivos em uma trança, se ergueu e foi em direção à fogueira armada pelos seus irmãos.
- Você está certa - disse se virando para Unna - eu tinha tudo sobre controle. Já estávamos investigando aquele ninho de malditos a semanas, e os elementais da terra já haviam me dito como era o relevo ali.
- Mas, eu não pude prever a quantidade de malditos que estavam naquele buraco. Acho que ninguém podia prever isso.
- Viu Unna, até a poderosa Greinne comete erros de vez em quando.
- Eu não cometi nenhum erro, Bran. Eu pedi aos líderes que me dessem vocês para essa missão exatamente por que eu não sabia quantos malditos existiam. Escolhi vocês por causa de cada uma de suas qualidades, poderes e comportamento.
Se sentou em frente a fogueira, absorvendo um pouco do doce aroma e calor das chamas. Respirou profundamente, observando a face consternada de seu irmão de matilha. Aquela explicação ainda não era suficiente, parecia.
- Veja, irmão, iríamos para uma caverna no centro de um bolsão umbral. Escolhi a Unna por causa disso, o conhecimento da umbra dela é fantástico, e a capacidade de comandar espíritos nos colocaria em vantagem contra qualquer maldito mais poderoso.
Unna não conseguiu segurar o orgulho, estufando o peito como uma criança, e estampando um sorriso que cruzava toda sua face.
- Escolhi você, Bran, por que não temos ninguém mais rápido e esguio como você. Precisava de alguém que conseguisse se movimentar por espaços escuros e apertados, e conseguisse abater alvos prioritários. O que você o fez muito bem, quando estripou o maldito que estava comandando as hordas de vermes.
Bran virou a cara, visivelmente ruborizado. Costumava ter palavras afiadas para dizer em horas como essa, mas aparentemente não conseguiu encontrar nenhuma.
- Por fim, escolhi Guill e Niall por serem os ahrouns mais forte que possuímos. A capacidade que esses irmãos têm para lidar com um grande número de inimigos é lendária, ainda mais com a habilidade com lanças e machados que eles refinaram ao longo dos anos.
Niall tentou sorrir, mas o ferimento que cobria toda a extensão de seu peito e parte da face impedia qualquer demonstração de emoção. Contentou-se em apenas acenar com a cabeça.
- No final, tudo aconteceu como eu previra, e da melhor forma possível.
Sorriu consigo mesmo, realmente tudo havia ocorrido maravilhosamente bem. Dentre vários cenários que havia planejado, a morte dos irmãos era quase certa. No plano final, estava disposta a sacrificar um deles para concluir a missão.
Estava disposta a sacrificar a própria vida para concluir a missão, caso algo desse muito errado.
- Isso ainda me parece meio mágico, hein Grein? Você conseguiu mesmo prever tudo o que ia acontecer?
- Hahaha, claro que não Bran. Não previ nada, meu amigo. Apenas planejei.
- Me parece a mesma coisa...
- Para as mentes fracas, deve parecer mesmo - sorriu sarcasticamente para o Bran. Eram raras as vezes em que se podia fazer escarnio com ele sem uma retaliação que beirava o frenesi.
Bran montou uma feição de ira, apenas para cair na gargalhada segundos depois. Unna se juntou a ele, e logo o pequeno acampamento estava mergulhado em piadas, risos e tranquilidade. Tranquilidade que foi destruída pelo uivo desesperado que veio em seguida.
Todos se levantaram de solavanco, se colocando imediatamente a postos, prontos para uma batalha iminente. Unna e Bran assumiram a forma lupina, enquanto Grein e Niall assumiram a forma guerreira. As presas de todos brilhavam lugubremente à luz da fogueira, e a tensão poderia congelar as aguas do rio.
Poucos momentos depois, um lobo cinzento veio correndo por entre as arvores, com um semblante de urgência em seus olhos. Corria tanto quanto suas patas permitiam, e, quando finalmente avistou a galliard, acelerou ainda mais.
Grein conhecia aquele lobo, já cruzara seu caminho algumas vezes. Era um Peregrino Silencioso, e costumava levar e trazer histórias nos Caerns locais. Se ele estava ali, com certeza as notícias não seriam boas.
Abaixou um pouco a guarda, e sinalizou para os outros que não havia perigo ali, pelo menos não no momento. Retornou à forma humana, e aguardou a chegada do lupino. Alguns segundos depois, o mensageiro já estava à sua frente, sujo, esbaforido e consternado. Parecia que havia corrido metade do continente até chegar ali.
- Greinne Lâmina-do-Conhecimento, tenho notícias para você e sua seita, e receio que não seja das melhores.
- Conheço seu nome, peregrino. Você é Caminho-Sinuoso, já ouvi seus feitos e suas histórias. Você é bem-vindo à minha seita e à minha fogueira. Por favor, se sente e me conte as notícias que veio prontamente nos dizer.
O tom formal que adotara não era proposital, mas sempre que falava em nome da seita, instintivamente assumia o linguajar mais polido e rebuscado. Talvez tenha passado muito tempo com os philodox, chegou a pensar em tempos passados.
- A conheço também, Greinne Lâmina-do-Conhecimento. Um dos meus melhores amigos nessas terras sempre fala de você. Não se cansa de entoar seus feitos, suas batalhas e canções. Mais de uma vez o vi, bêbado de hidromel, contar a história do pico da névoa.
- Do jeito que fala, parece até que está descrevendo meu irmão.
- E estou - e, por um segundo, o peregrino desviou o olhar.
Uma pontada de preocupação perfurou o coração da garou. Não via seu irmão há mais ou menos uma estação, mas sempre ouvia história de seus feitos e batalhas. Era um ahroun cabeça quente, com uma queda um tanto quanto perigosa para o hidromel e uma língua que poderia fazer o mais obsceno dos ragabash ruborizar.
- O que aconteceu com Bredon, peregrino? - as palavras saíram claramente, mas não conseguiu impedir o leve tremer dos lábios.
- Me perdoe, Greinne, me perdoe - o garou baixou os olhos e cabeça, incapaz de encarar a garou nos olhos.
- ME DIGA ONDE ESTÁ BREDON!
Todos os presentes saltaram instintivamente para trás, mais pela fúria perene que a galliard estava emanando do que pelo grito gutural que havia proferido.
- Ele… ele está morto. Muitos estão mortos. Eu vim correndo para cá para alertar sua seita, para te alertar.
- Como? - disse calmamente, mas calmamente como o olho de um furação.
- Os fenrires estão descendo a costa, e desfiando caern após caern. Bredon não gostou do líder da seita praticamente entregar o caern a eles, então desafiou o líder dos fenrires. Ele… ele não aceitou se render, mesmo quando o fenrir arrancou o braço dele. Ele não desistiu…
Foi se sentindo enjoada à medida que o peregrino ia contando os fatos, vendo perfeitamente em sua mente o desenrolar das ações. Conhecia seu irmão como ninguém, e sabia que a honra dele jamais permitiria que perdessem o solo sagrado que protegiam desde filhotes. Sabia que ele preferiria a morte a ter que receber ordens de forasteiros, de usurpadores e profanadores. Sabia que ele lutaria até as últimas forças, pois é o que ela faria também.
- Obrigado por sua fidelidade a meu irmão, peregrino. O convite para nossa seita ainda está de pé. Caso queira vir comigo, será bem-vindo.
- Ainda tem mais! Eles não pararam ali, eles continuam descendo a costa. Não tardará, e estarão aqui também.
Greinne fechou os olhos firmemente, mantendo a imagem do amado irmão na mente. Tinha tanta coisa para contar, tantas histórias para ouvir, tanto a dividir. Seu coração ficou pesado e sua fúria estava quase transbordando em uma enxurrada de morte. Mas manteve a compostura, e enxugou a única lágrima que escorreu por sua face.
- Entendo sua urgência, peregrino. Mas é exatamente isso que eu espero, que eles venham para cá. E quando chegarem, vão desejar nunca terem tirado as patas do bloco de gelo que eles chamam de lar.
CONTINUA...
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